Marcos R. Ferreira
Ana Mercês B. Bock
M. da Graça M. Gonçalves
Francisco J. M. Viana
Instituto Silvia Lane
Por que aceitamos que seres humanos vivam Fome? Afinal, será que somos mesmo pessoas tão ruins? Como conseguimos dormir, sabendo que existem pessoas vivendo Fome? Por que nos incomodou tão pouco a informação de que trinta e três milhões de pessoas em 2021, incluindo sete milhões de crianças, viviam Fome todos os dias no Brasil?
A rigor, devemos nos indagar: por que aceitamos a desigualdade social no convívio humano? Mas, este artigo foca em Fome, porque ela consiste na desigualdade social levada ao paroxismo. A existência de pessoas que vivem na opulência, no mesmo planeta em que seres humanos vivenciam Fome, enfeixa todas as caracterizações do que seja desigualdade social.
Uma forma de compreender essa aceitação consiste em reconhecermos que vivemos imersos em consensos que não percebemos e, sequer, temos ideia de sua existência. Esses consensos conformam e enquadram nossas percepções e como que “acomodam” nossa forma de estabelecer percepções e reações aos eventos, mesmo os mais difíceis.
Nesta perspectiva, consensos materializam ideologias, tanto no sentido dado a essa palavra por Marx (de ser uma distorção da realidade realizada e hegemonizada pela burguesia), quanto na concepção de Mannheim (neste caso ideologia total), como se compusessem um pano de fundo no processo de constituição das subjetividades, sobre o qual os eventos e percepções vão sendo “encaixados” de forma a se organizarem e compatibilizarem.
Um exemplo de materialização de que os consensos vigentes aceitam que seres humanos vivenciem Fome: ela não é tratada como um desastre. Quando ocorre um desastre, surge um ambiente de tensão. As indagações sobre o que e como aconteceu o desastre tomam conta do debate entre as pessoas. A imprensa passa a dar notícias seguidas. Em suma, a atenção da sociedade se volta para ele. O aparelho de estado é acionado para o resgate e para oferecer assistência às pessoas afetadas. Diferentes grupos e organizações da sociedade civil articulam iniciativas que, no mais das vezes, superam as possibilidades de aproveitamento por parte das pessoas afetadas. Já no caso do ressurgimento de Fome no Brasil (depois de ter sido fortemente debelada), a notícia não produziu comoção social.
Consensos podem ser de tipos variados. Como exemplos vale a pena apontar desde 1) aqueles construídos com a participação da sociedade (como no caso da restrição ao uso de cigarros), até 2) aqueles que são forjados por algum ator com poder de influência na sociedade (como no caso das acusações feitas a Lula), chegando aos 3) que podem ser chamados de “vernaculares” (no sentido de que somos inseridos neles assim como aprendemos a língua materna), como aquele que nos faz considerar plausível a desigualdade social (Ferreira et al, 2022), por exemplo a desigualdade social que está materializada na guerra estabelecida no país contra a população negra (notadamente, à juventude negra), a agressividade contra as mulheres brasileiras e, de forma central, Fome vivenciada por seres humanos.
Vale ressaltar que, no sentido adotado neste texto, apesar da enorme abrangência social dos consensos vernaculares, eles não implicam em unanimidade. Os consensos podem existir restritos a setores da sociedade. Podem conviver com consensos com conteúdo contraditório e até contrário, na mesma região geográfica e no mesmo momento histórico.
Para compreender a força apaziguadora dos consensos, é possível imaginar o nível de alienação em que precisamos viver para suportar, sem nos desesperarmos todos os dias, diante de tão penetrante, generalizada e intensa desigualdade? Do ponto de vista da constituição de subjetividades, é nesse apaziguamento do desespero que entra em ação o consenso vernacular, no qual fomos inseridos desde o nosso ingresso na cultura.
As subjetividades brasileiras se constituem, são produzidas, a partir da imersão nos consensos em que somos inseridos da mesma forma como aprendemos a andar em pé, comer determinados alimentos e falar a língua de nossas mães (daí o nome vernacular). Nem percebemos que isso ocorra, não há alternativa a não ser tratarmos como “natural” aquelas dimensões da vida que aprendemos desde a mais tenra idade. Podemos até estranhar que alguma dessas dimensões sejam apontadas ou destacadas em algum debate. Mesmo que sejam dimensões que, examinadas à luz da crítica política ou profissional nos pareçam absurdas, como o racismo e a admissibilidade da Fome em seres humanos (Ferreira e outros, 2022).
Há um modo de verificar a força desses consensos sobre o nosso cotidiano. A simples existência de seres humanos vivenciando fome teria que ser tratada como um desastre. Do mesmo tipo (ou até mais grave) que o rompimento de uma barragem, cuja enxurrada produz devastação e mortes. Tema sendo abordado de forma persistente em cada emissão dos telejornais. Assunto discutido nos almoços ou jantares de famílias. Governo e sociedade articulados na redução de sofrimento e superação da condição instalada. Algo que nos colocasse em ação para impedir sua continuidade. Mas, o fato é que, mesmo frente a informação de que milhões de gentes brasileiras (inclusive milhões de crianças) não tinham acesso a alimentos em 2022, a sociedade brasileira conseguia conciliar o sono a cada noite.
PRODUZIR CONSENSOS QUE INCLUAM A INACEITABILIDADE DE (E OJERIZA A) FOME
Nesse contexto é que fica clara uma tarefa urgente para a Psicologia: reconhecer, estudar e denunciar os consensos que aceitam Fome em humanos. Ao mesmo tempo em que são construídos conhecimentos e propostas de intervenção visando a constituição de novos consensos, vinculados à inaceitabilidade de Fome.
Como nos apontou Marcus Vinícius de Oliveira Silva (Silva et al, 2021), a constituição das subjetividades dos brasileiros só pode ser compreendida se considerarmos que durante quase quatrocentos anos de constituição da nação, tivemos como elementos mais marcantes a ocorrência de escravismo e de colonialismo. A seguinte equação, descrita por Marcus Vinícius e utilizada em um cartaz do evento do Instituto Silvia Lane, explicita as dimensões consideradas aqui como fundantes do consenso vernacular mais forte e abrangente que reconhecemos na vida brasileira (os números se referem ao momento em que o Marcus elaborou a equação):
Subjetividades dos Brasileiros = 200 x 9 x 10
400 EC
Ou seja, as subjetividades da gente brasileira seriam decorrentes dessa equação onde o numerador consistiria em ser um país grande, com duzentos milhões de habitantes, ser a nona economia do mundo e, ao mesmo tempo, o décimo país com maior desigualdade social no planeta. O denominador consistiria nos quatrocentos anos de história como colônia e praticante de escravismo.
A aceitabilidade da Fome resulta de uma conjunção muito específica de fatores que produziram esse consenso e que inclui um outro elemento que consiste na aceitação de que possam existir cidadãos de segunda categoria. Aliás, como mostramos junto com Marcus Vinícius (Silva e outros, 2021), escravismo conjugado com colonialismo não resultou apenas em duas categorias de sujeitos. Foi produzida uma vasta gama de possibilidades de enquadramento das pessoas, estabelecendo cidadãos de segunda, terceira ou quarta (ou até mais) categoria, do ponto de vista do processo de estabelecimento de quão válidos são os diferentes sujeitos brasileiros.
Seria equivocado considerar que a situação brasileira de descaso com a Fome seja uma novidade no planeta. O adorável satírico Jonathan Swift, em seu inacreditável texto intitulado “Uma modesta proposta”, há cerca de trezentos anos denunciou o mesmo descaso na Irlanda do século dezoito. Com muito mais crueza do que se poderia esperar, ele “ensaiou” soluções que não defenderia a sério (e que não temos coragem de reproduzir aqui), cujo conteúdo desnuda a hipocrisia em seu país, no tocante à forma como as pessoas pobres eram tratadas. É inacreditável a semelhança entre a Irlanda de séculos atrás e o panorama que pode ser observado no mundo contemporâneo, inclusive no Brasil de 2020.
De fato, esse consenso que admite Fome em seres humanos transcende as fronteiras brasileiras, embora talvez não transcenda as suas origens, que parecem sempre vinculadas a colonialismo e a algum tipo de subalternidade (como o escravismo). A despeito de vivermos num planeta rico em termos de produção de alimentos, Fome aparece em quase todos os países do mundo, inclusive em suas regiões mais industrializadas. Considera-se que hoje atinja mais de dez por cento de toda a população do planeta. Há poucos anos, nos Estados Unidos, era possível acompanhar uma campanha radiofônica em que surgia a afirmação de que um em cada seis estadunidenses não têm alimentação diária garantida. Na campanha, a afirmação era de que essas pessoas vivam Fome, apesar disso não ser reconhecido pela sociedade local.
O consenso que inclui a admissibilidade da Fome de humanos, inclusive de crianças, sustenta muitas compreensões equivocadas sobre a história das nações e muitas linhas truculentas de intervenção política. Exemplo de equívoco na história contada: há todo um continente que foi empobrecido, pari passu à expansão do pensamento iluminista no planeta. Pelos critérios adotados pela ONU nos nossos dias, no continente africano o quadro de Fome que hoje conhecemos não existia antes da chegada dos europeus.
Apesar da inaceitável situação vivida em muitos países africanos, há correntes políticas que ganharam força no Brasil que se opõem aos acordos internacionais de apoio aos povos do continente africano. Esse é o caso do combate que os governos capitaneados pelo Partido dos Trabalhadores têm sofrido por planejar investimentos na África. À época de seus primeiros mandatos, o querido Presidente Lula referia dívidas históricas do Brasil. Hoje ele refere dívidas históricas planetárias para com a África. Mesmo assim, os investimentos realizados e planejados foram (e seguem sendo em 2023) tratados como objeto de denúncia por parte de atores políticos e midiáticos.
Claro, ninguém de nós (nem mesmo o execrável ex Ministro Guedes) afirmaria publicamente que Fome seja aceitável ou até merecida por seres humanos. Já que ninguém defende isso, passamos a tentar compreender quais os sentidos atribuídos no debate público e mesmo em conversas privadas sobre a relação das pessoas com o tema Fome. Nesse trajeto identificamos duas correntes principais de atribuição de sentido à ocorrência de Fome.
PRODUÇÃO DE FOME COMO OBJETO PLANIFICADO DE GOVERNOS
A primeira corrente que identificamos nas assertivas e críticas recolhidas nas jornadas Psicologia e Fome, realizadas pelo Instituto Silvia Lane em 2021 e 2022, consiste na compreensão de que Fome seja um resultado não desejado e até inesperado de um determinado padrão de intervenção do aparelho de Estado. Uma decorrência não planejada de outras medidas, consideradas como seguramente necessárias ou inescapáveis.
A segunda forma de atribuição de sentido encontrada na escuta das falas, consistia na compreensão de que a ocorrência de Fome seja resultado da inépcia de governos. Por vezes, resultado de erros cometidos na administração da economia e do aparelho de Estado. Essa leitura da incompetência dos governantes é muito geral na interpretação dos problemas vividos em sociedade. A compreensão que aponta a incompetência governamental vai além do tema da Fome, pois há quem atribua à incompetência do governo a ocorrência de centenas de milhares de mortes na pandemia.
Nessas duas racionalidades identificadas no modo de tratar Fome brasileira no século vinte e um, seja a incompetência, seja o resultado indesejado da política econômica (que não consegue fazer o Brasil crescer) há um elemento comum. Ambas supõem que houvesse uma intenção, um esforço, um projeto no sentido de impedir a ocorrência de Fome, mesmo que frustrados pelas circunstâncias.
Pois bem, essas eram as atribuições de sentido mais evidentes nas falas que recolhemos (seja como afirmações, seja como denúncias). Não somente nesses debates, essa compreensão aparecia também nas falas recolhidas em diferentes contextos, incluindo a mídia comercial.
Entretanto, foi possível perceber uma outra atribuição de sentido que se tornava mais delineada conforme concentrávamos a atenção nas falas dos participantes das jornadas Psicologia e Fome. Mesmo que não fosse expressado de forma explícita, nossos convidados pareciam nos informar que a produção de Fome precisava ser compreendida como um projeto alvo de planificação de governos. Não um descaso, uma incompetência ou um resultado indesejado de alguma política econômica ou social, Fome precisaria ser compreendida como um objetivo estabelecido e que colocava em marcha um modo de intervenção específico do aparelho de Estado capaz de produzi-la.
A ideia de que Fome pudesse ser algo que interessava a determinados atores políticos ou de que ela pudesse ser do interesse de alguém já estava presente. Mas, ao perceber esse sentido de algo formalmente planejado, testamos a formulação em diferentes situações apresentando essa compreensão (a produção de Fome é um projeto transformado em planos governamentais) para alguns dos próprios profissionais que haviam trazido contribuições durante as jornadas. Em alguns momentos desenvolvemos alguns possíveis corolários dessa tese geral, criando assertivas como “dá tanto trabalho produzir Fome quanto combatê-la”, ou “a produção de Fome exige uma política pública específica” ou “as medidas necessárias para a produção de Fome exigem o envolvimento sincrônico de diferentes instâncias governamentais”.
A despeito do caráter absurdo de cada uma dessas formulações, mesmo quando não aquiesceram, nenhum deles mostrou surpresa ao escutá-las. Colhemos essa falta de surpresa como uma confirmação de que havíamos interpretado corretamente a atribuição de sentido subjacente às suas falas nos eventos do Instituto.
DESNATURALIZAR A ACEITAÇÃO DE FOME
No caminho da compreensão dos consensos sociais que incluem a aceitação de que seres humanos vivenciem Fome, vale a pena atentar para o processo vivido recentemente no contexto brasileiro. Fome havia sido praticamente debelada como flagelo epidêmico mas, é preciso constatar que tenha havido aceitação, por parte da sociedade brasileira, de que a Fome se re-instalasse. Não houve uma recusa geral da sociedade a essa produção. Como se fosse algo “natural” a sua presença entre nós.
Em outros assuntos, mesmo que de forma silenciosa, houve bloqueio da sociedade a iniciativas do governo genocida. Por exemplo, a ameaça do uso de violência contra opositores, produziu reações. De algum modo, a permanência dos espaços de manifestação de vozes da esquerda foi garantida por uma compreensão coletiva do inaceitável que seria o cumprimento da promessa de colocar a oposição “no exílio, presa ou morta”.
Essa reação de recusa não aconteceu frente ao ressurgimento de Fome. A leitura dessa não rejeição foi tomada por nós como confirmação e reconhecimento da existência de um consenso amplo e abrangente que inclui Fome como algo admissível.
Outro aspecto que chama a atenção é um tipo de complacência disfarçada em relação às informações sobre a ocorrência de Fome. Trata-se de outro elemento de confirmação da existência do consenso que chamamos de vernacular: quase ninguém se sente mal por tratar Fome humana como um dado, uma estatística ou como uma imagem forte de pessoas esperando ou disputando ossos.
Além desses dois aspectos, um terceiro elemento consistiu na óbvia delimitação da aceitação e complacência. Elas transparecem somente quando aqueles que estão se expressando, se referem à Fome de outras pessoas. Mesmo havendo silêncio quando ocorre Fome em nosso país, em nossa cidade, em nosso bairro ou na nossa rua, parece seguro afirmar que, se Fome estivesse dentro das nossas casas ou da casa de nossos entes queridos, aceitação e complacência simplesmente seriam impensáveis. Como disse Carolina de Jesus, quem inventou Fome são as pessoas que comem.
Se tudo tiver dado certo até aqui, esperamos que já estejamos construindo juntos dois consensos. O primeiro deles, acerca de uma tarefa urgente para a Psicologia e para quantos atores sociais possam ser mobilizados: Fome deve ter prioridade em nossas agendas. O segundo é de que a Psicologia deva contribuir, propor, incentivar, difundir consensos em que Fome seja considerada inadmissível. De que não vamos nos calar frente a esse absurdo.
De que vamos exigir de nossos pesquisadores que estudem esse assunto, sob os mais diferentes ângulos, talvez com prioridade para compreender como se constituem subjetividades em meio à Fome, assim como o modo como se constituem sujeitos que admitem a Fome. De que vamos convocar nossos profissionais, estudantes e professores a se prepararem para lidar de forma competente nessa construção.
De que vamos ter claro que nossa tarefa precípua, para além de fortalecer linhas de oferta de alimento a quem precise, será a de contribuir para estabelecimento de territórios livres da aceitação de Fome. Que vamos destrinchar, compreender e combater os consensos perversos e contribuir para a construção de novos consensos.
Esperamos que já estejamos construindo um consenso de que vamos exigir que nossa profissão se empenhe em produzir ações que apoiem as atuais iniciativas governamentais que visam a reversão do quadro de Fome no país (no momento em que este texto começou a ser escrito, visávamos evitar o quadro de então, de agravamento da Fome).
De que vamos exigir de nossas entidades que participem de iniciativas de promoção do debate sobre a sua inadmissibilidade. De que nossas entidades se empenhem em participar dos coletivos que se estabeleçam em torno a esse tema.
De que vamos contribuir de forma efetiva ao estabelecimento de consensos sociais marcados pela inaceitabilidade de Fome, no Brasil e no planeta. De que vamos fazer uma convocação planetária para a promoção de consensos de que Fome seja tratada como inadmissível na Terra.
E mais, que vamos sempre escolher (e ajudar a escolher) políticos que tenham compromisso com o combate à Fome, como fez a Articulação Psi no ano de 2022. Combate não, com a aniquilação da Fome. Enfim, de que vamos exigir de nós mesmos, de nossas entidades, de nossos colegas, que o tema Fome (e sua inaceitabilidade) ganhe prioridade nas agendas da Psicologia.
Referências:
FERREIRA, Marcos R. et al - Para chegar a ser humanos: conhecer e reconhecer os sujeitos brasileiros. In ARANTES, Aldo (Org.) - Reconstruir a Democracia - União de amplas forças políticas e sociais para a luta ideológica.São Paulo: Expressão Popular; Anita Garibaldi; Fundação Maurício Grabois; ABJC, 2021, p. 61-83.
SILVA, Marcus V. O. et al – Sobre Psicologia e o reconhecimento de sujeitos válidos na vida social. In FERREIRA, Marcos R.; BOCK, Ana M.B.; GONÇALVES, M. Graça M. (orgs.) – Estamos sob ataque! – tecnologias de comunicação na disputa de subjetividades (livro eletrônico). São Paulo: Instituto Silvia Lane, 2021, p. 312- 321.